Por Jorge Machado, COLAB/USP
O último Censo revelou que a população indígena do Brasil é de 1,7 milhões de pessoas. Isso significa um notável crescimento em relação ao censo anterior, de 2010, quando foram registrados 896 mil indígenas1. Sujeitos historicamente à situações de discriminação e violência, a população de ancestralidade indígena foi sujeita a invisibilidade. O aumento da autodeclaração possui grande significado para o resgate da identidade indígena, conforme afirmou a Ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, no lançamento do “Censo 2022 Indígenas: Primeiros resultados”, em Belém, no mês passado.
No entanto, a Universidade de São Paulo tem entendimento particular sobre quem pode ser reconhecido como indígena. A Resolução 8434/2023 da USP exige a apresentação do Registro Administrativo de Nascimento Indígena (RANI) como prova de ser indígena. De acordo com a norma:
“Artigo 3º – Para confirmação da autodeclaração do candidato indígena será exigido o Registro Administrativo de Nascimento do Índio – RANI próprio ou, na ausência deste, o RANI de um de seus genitores.
Parágrafo único – Situações excepcionais poderão ser avaliadas pelo Conselho de Inclusão e Pertencimento, que poderá admitir a confirmação da autodeclaração do candidato como indígena por meio de, cumulativamente, memorial e declaração de pertencimento étnico subscrita por caciques, tuxauas, lideranças indígenas de comunidades, associações e/ou organizações representativas dos povos indígenas das respectivas regiões, sob as penas da Lei.”
Na ausência do RANI, a USP pede um memorial e “declaração de pertencimento étnico” assinada por lideranças indígenas “sob penas da Lei”. Cabe dizer que o RANI tem a função de registrar nascimentos em aldeias distantes, onde não há hospitais e maternidades, servindo como meio de prova para Registro Civil e emissão da Certidão de Nascimento. A maioria dos indígenas não possuem o RANI. O último dado público disponível, ainda do Censo 2010, apontou que apenas 22,7% dos indígenas (203 mil) possuíam o RANI. Sendo assim, além do desvio de sua função, a exigência do RANI constitui um critério altamente excludente para os indígenas.
A exigência do RANI é ainda mais grave quando levamos em consideração que existem indígenas de outros países, especialmente andinos, vivendo no país. Para a USP somente há indígenas no Brasil. Apenas no Estado de São Paulo, há 360 mil estrangeiros. Destes, é estimado que 1/3 sejam bolivianos – nesse país, cerca de 88% de sua população possui origem indígena ou mestiça. Afirmar que só brasileiros podem ser considerados indígenas é a mesma coisa que dizer que africanos não podem ser considerados pretos ou pardos.
De acordo com a FUNAI, O RANI é um documento administrativo e não confere nenhum benefício
especial ao seu possuidor, nem é garantia ou condição exclusiva de pertencimento étnico. Segundo ainda a FUNAI, “de acordo com o ordenamento jurídico brasileiro, não há órgão, entidade ou instituição por si próprio que tenha o poder de atestar, declarar, certificar, validar, confirmar ou ratificar a origem de qualquer cidadão enquanto indígena.” Logo a USP não teria esse poder.
Tal entendimento é convalidado pelo Estatuto do Índio e pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, reconhecida pelo Brasil através do Decreto nº 5.051/2004. Posteriormente, outro decreto, o 10.088/2019, veio consolidar os atos normativos federais relativos a Convenção nº 169 da OIT. Este decreto estabelece em seu artigo 1º que “a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção”.
Se a USP pretende estabelecer algum fator limitante para evitar eventuais abusos, então que exija uma autodeclaração do candidato(a) e que a mesma tenha caráter público, para fins de controle social. Não deveria fazer exigências descabidas, para além do que a FUNAI e a legislação federal estabelece.
A USP precisa rever a resolução que norteia as políticas da PRIP para que os resultados alcançados não sejam contrários aquilo que se espera alcançar, sob o risco de gerar barreiras adicionais à visibilidade e à representação de indivíduos de ancestralidade indígena.
Notas:
https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/dados-do-censo-2022-revelam-que-o-brasil-tem-1-7-milhao-de-indigenas
https://g1.globo.com/pa/para/noticia/2023/08/07/censo-do-ibge-2022-as-pessoas-estao-estao-a-vontade-para-dizer-que-sao-indigenas-diz-ministra-sonia-guajajara.ghtml
De acordo com o “Estatuto do Índio”, Lei 6.001/73, Artigo 13, “o registro administrativo constituirá, quando couber, documento hábil para proceder ao registro civil do ato correspondente, admitido, na falta deste, como meio subsidiário de prova”. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l6001.htm
https://www.ibge.gov.br/apps/atlas_nacional/pdf/ANMS%20Indio.pdf
https://www.cia.gov/the-world-factbook/countries/bolivia/#people-and-society
https://www.gov.br/funai/pt-br/assuntos/noticias/2023/funai-explica-aspectos-do-registro-administrativo-de-nascimento-de-indigena-rani
A Coalizão Direitos na Rede vem se manifestar sobre o processo de revisão da estrutura de governança da Internet, iniciado unilateralmente pelo Governo Temer, por intermédio da Secretaria de Políticas de Informática (SEPIN) do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicações (MCTIC), com vistas a alterar a estrutura representativa e atribuições do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br).
Apesar de o processo de revisão ter se iniciado sem que o próprio CGI.br fosse envolvido – contra o que nos posicionamos por meio da Nota de Repúdio direitosnarede.org.br/c/governo-temer-ataca-CGI/-, no último dia 18 de agosto, durante a primeira reunião do Comitê após o término de seu processo eleitoral, decidiu-se que todas as contribuições recebidas pelo MCTIC serão encaminhadas ao CGI.br.
A partir de então, o próprio Comitê, empregando ferramentas disponíveis para habilitar ampla participação da sociedade, lançará uma consulta pública para basear a elaboração de um documento contendo informações, diretrizes e recomendações para o aperfeiçoamento da estrutura de governança da Internet no Brasil.
A mudança proposta visa minimizar a repercussão negativa gerada pela consulta pública do governo, publicada de forma unilateral e sem qualquer diálogo prévio. É certo que o Estado deve, periodicamente, formular e fomentar estudos e estratégias referentes ao uso e desenvolvimento da internet no País, nos termos do art. 28 do Marco Civil da Internet, entretanto, é importante registrar que especialistas em Governança da Internet do mundo todo, como o pesquisador Milton Mueller, criticaram o fato de o Comitê Gestor estar submetido a riscos de interferências políticas em um processo de reforma institucional que não surgiu de forma endógena ou tenha sido debatido pela comunidade. (ver www.internetgovernance.org/2017/08/17/brazilian-internet-steering-committee-under-threat/).
Assim, a partir da decisão tomada pelo próprio Comitê, que conta com nove representantes do governo, quatro do terceiro setor, quatro das empresas e quatro da academia, a consulta pública instalada pelo MCTIC passará a constituir uma primeira etapa do processo de revisão da estrutura de governança da Internet, cabendo então ao CGI.br a responsabilidade por coordenar a elaboração da recomendação final a ser encaminhada ao governo, para eventual edição de novo decreto.
A Coalizão Direitos na Rede tem feito das disposições expressas na Lei 12.965/14, no sentido de que a governança da Internet deve se dar de acordo com mecanismos multiparticipativos, transparentes, colaborativos e democráticos – conforme o art.24 da referida lei -, com a participação do governo, do setor empresarial, da sociedade civil e da comunidade acadêmica. Sendo assim, reiteramos um dos princípios para governança que defendemos por intermédio de nossa Plataforma para as eleições do CGI.br deste ano:
“Fortalecimento do Comitê Gestor da Internet no Brasil, preservando suas atribuições e seu caráter multissetorial, como garantia da governança multiparticipativa e democrática da Internet, como está estabelecido pelo Marco Civil da Internet. Afirmação do CGI como peça fundamental de um ecossistema regulatório para a Internet, entendida em sentido amplo, inclusive contribuindo para a formulação de modelos de novas autoridades regulatórias, como no caso da proteção de dados.”
Acreditamos que o lançamento unilateral de uma consulta pública, constitui uma ruptura com o multissetorialismo que representa característica histórica dos debates sobre a Internet, potencialmente enfraquecendo o CGI.br. Considerando que a atuação do CGI possui reconhecimento internacional, servindo inclusive de inspiração e de modelo para outros países, a Coalizão Direitos da Rede entende que o mesmo deve ser fortalecido. Assim, defendemos que as contribuições a serem apresentadas para o processo de revisão do CGI.br sejam endereçadas principalmente para plataforma a ser divulgada pelo próprio Comitê, de modo que as mesmas venham servir de referência para a etapa posterior.
Destacamos ainda a importância de que todos os atores interessados na governança da Internet brasileira se mobilizem para participar presencialmente dos debates sobre o tema que acontecerão ao longo do VII Fórum da Internet no Brasil, que ocorrerá na cidade do Rio de Janeiro, de 14 a 17 de novembro deste ano. À ocasião e durante as consultas realizadas pelo CGI.br, a Coalizão Direitos na Rede e as organizações que a integram ativamente encaminharão propostas para a ampliar a participação e transparência do Comitê, prezando pelo avanço e manutenção da gestão democrática da Internet.